Sônia Jaconi: “Acesso restrito à educação midiática deixa sociedade vulnerável à manipulação de conteúdo”

Por Vitória Figueiredo
A desinformação e a alteração de conteúdos por inteligência artificial foram apontados como a segunda maior ameaça global, superados apenas pelas mudanças climáticas, como informa dado do Fórum Econômico Mundial, de janeiro de 2024. A informação foi divulgada em maio de 2024, pelo portal Agência Brasil. Os desafios gerados por essas ameaças estão presentes, por exemplo, na rede social X (antigo twitter), em que usuários podem acionar o “Grok”, plataforma de IA do X, e indagar se determinado conteúdo é verdadeiro. Dentre esses conteúdos, há matérias jornalísticas, que também são alvo da “pesquisa de veracidade” do usuário, por meio da IA.
Ampliados pela IA e pela desinformação, esses desafios relacionados à comunicação são, na atualidade, uma das pautas da educação midiática, um tipo de saber composto por ações que possibilitem, ao usuário da internet e de outras mídias, uma análise crítica das informações que, todos os dias, chegam até ele. O ensino midiático tem pilares ligados à leitura e avaliação criteriosa das informações da internet, escrita responsável dentro das redes sociais e participação no combate à desinformação.
Essas habilidades se tornam mais necessárias à medida que a inteligência artificial avança, como explica Sônia Maria Jaconi, doutora em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pesquisadora em Educação, conectividade, políticas públicas educacionais e desenvolvimento do território. Sônia participou de edição da Revista Mediação , do curso de Comunicação, sobre educação midiática. Em entrevista ao Conecta, a profissional comenta sobre os desafios que permeiam a alfabetização midiática e o Jornalismo, em uma era cada vez mais dominada pela algoritmização das informações e crescimento das IAs.
Conecta: A educação midiática surge para preparar as pessoas para lidarem com as mídias de forma criteriosa. Com o desenvolvimento acelerado de inteligências artificiais, quais desafios a educação midiática tem pela frente?
Sônia Jaconi: Os desafios são muitos. Antes da IA, a educação midiática era essencialmente técnica, focada na capacitação do estudante para realizar análises críticas sobre conteúdos audiovisuais, jornalísticos e publicitários. Agora, apenas esse tipo de educação não é mais suficiente, pois é necessário, também, capacitar os jovens para o uso ético e responsável das ferramentas de IA e para o entendimento dos algoritmos por trás das plataformas, considerando todas as consequências sociais, políticas e econômicas. Outra questão importante no contexto da educação midiática é o letramento digital para todos, portanto, uma educação ampla e inclusiva, de forma que um número cada vez maior de usuários possa entender, de forma crítica, as informações que circulam na internet, além de usá-las de maneira responsável e segura.
C: Enquanto as IAs se desenvolvem cada vez mais, saber lidar com os conteúdos veiculados nas mídias sociais é fundamental para minimizar a disseminação de notícias falsas. Considerando essa situação, como o Jornalismo pode auxiliar o cidadão a lidar com os avanços da IA?
S.J.: O Jornalismo tem papel fundamental no que diz respeito a minimizar a disseminação de informações falsas. Isso pode ser feito de várias maneiras: informando sobre o funcionamento dos algoritmos, produzindo matérias sobre a identificação de fontes falsas, alertando o público sobre conteúdos manipulados por IA. Além disso, o próprio Jornalismo pode servir como exemplo, divulgando como as notícias são checadas (fact-checking).
“A alfabetização midiática ajuda a reforçar que, neste mundo das redes sociais, o que importa é o engajamento provocado dos algoritmos e não o que é verdade ou não”
C: Fact checking, ou checagem de fatos, é um mecanismo que, a partir do cruzamento de dados e da apuração, ajuda a atestar se um conteúdo é verdadeiro ou falso. Além desse dispositivos, quais outras práticas de educação midiática o Jornalismo deve adotar para frear as fake news?
S.J.: Além do fact checking, o próprio jornal pode servir como um instrumento de educação midiática, produzindo conteúdo educativo sobre o funcionamento dos algoritmos e a importância da checagem das fontes. Esse conteúdo pode ser amplamente divulgado nas redes sociais dos jornais (Instagram, TikTok, Facebook, etc.). Outra questão essencial é formar jornalistas em educação midiática. O jornalismo profissional pode adotar transparência editorial para mostrar ao público sobre o processo de apuração e evidenciar quais são as fontes utilizadas para a verificação das notícias, levando mais confiança às pessoas.
C: Em relação às redes sociais, quanto mais o usuário interage com um conteúdo na internet, mais o algoritmo recomenda esse conteúdo. Nesse cenário, qual o papel da educação midiática para os cidadãos que utilizam as redes sociais e, portanto, usam também esse algoritmo?
S.J.: A Educação Midiática serve para o cidadão desenvolver consciência sobre o funcionamento dos algoritmos, mostrando, por exemplo, que não há conteúdo neutro nas redes sociais. A alfabetização midiática ajuda a reforçar que, neste mundo das redes sociais, o que importa é o engajamento provocado dos algoritmos e não o que é verdade ou não.
“Quando apenas uma pequena fatia da sociedade tem acesso à educação midiática, essa sociedade se torna vítima da desinformação e, principalmente, suscetível à manipulação de conteúdo”
C: Ainda sobre as redes sociais, o uso de ferramentas de IA para checagem de informações tem levado usuários a perguntarem à inteligência artificial se conteúdos jornalísticos publicados nas mídias sociais são verdadeiros. Diante de situações como essa, que evidenciam o avanço da IA, como o Jornalismo pode atuar e de que forma a educação midiática pode ser uma aliada da profissão?
O Jornalismo e a IA não devem se opor: a crença nessa posição é pouco crítica. Essas duas realidades dividem, e continuarão a dividir, o mesmo contexto. Portanto, o que o Jornalismo profissional deve fazer é exercer um papel cada vez mais educativo e aliado à sociedade, no sentido de ajudá-la na identificação de notícias falsas, na necessidade da investigação das fontes, na ação responsável de compartilhar notícias. Ao reforçar essa postura criteriosa e comprometida com o bem público da sociedade, o Jornalismo reafirma o lado mais humanizado da profissão, coisa que a IA não consegue fazer sozinha.
C: O uso criterioso das mídias é debatido nas universidades por professores e estudantes de cursos de Comunicação. Porém, a educação midiática ainda não é realidade para todas as pessoas não vinculadas à área da Comunicação. Que tipo de consequências esse cenário pode gerar? Quais medidas estão sendo implementadas para ampliar a alfabetização midiática?
S.J.: Sem dúvida, a educação midiática fica mais restrita aos cursos de Comunicação, o que é lamentável. A alfabetização midiática precisa ser uma realidade não apenas nesses cursos, mas em todos e, inclusive, fazer parte do currículo da Educação Básica (Ensino Fundamental I e II e Ensino Médio). Já temos alguns avanços nesse sentido. EM 2024, o estado do Piauí incluiu, no currículo das escolas públicas estaduais, do 9° ao 3° ano do ensino médio, disciplina sobre IA. Além de iniciativas como essa, políticas públicas devem ser pensadas para a educação midiática, visando acesso amplo à informação e ao uso crítico e responsável para todos. Quando apenas uma pequena fatia da sociedade tem acesso à educação midiática e, portanto, a maioria não, essa sociedade se torna vítima da desinformação e, principalmente, suscetível à manipulação de conteúdo.