Desacelerar para viver: o impacto da jornada 6×1 na saúde mental

Escala 6×1: seis dias de trabalho seguidos com um dia de descanso|Foto: Sinprefor

Por Gabriela de Castro e Maria Júlia Coelho

Com o álbum “Os Saltimbancos”, os compositores Sérgio Bardotti e Chico Buarque exploram o universo infantil para contar uma história cheia de metáforas que dialogam com a realidade adulta. Um dos personagens desse conto é o Jumento, retratado por meio das músicas como um animal manso, mas que, depois de muito tempo explorado, toma consciência de sua condição e se revolta, decidindo partir para a cidade grande para se tornar músico, o que dita o rumo da fábula.

No contexto da obra para crianças, o Jumento representaria a classe trabalhadora dentro de um sistema de exploração: não é bicho de estimação, não tem nome, nem mesmo apelido. E ainda é chamado de preguiçoso quando quer descansar. Assim como na ficção, é diante da atitude de se rebelar que grandes mudanças começam a acontecer. No mundo real, no qual animais não falam, os jumentos dificilmente se rebelam, muito menos modificam o destino das narrativas. Mas os seres humanos sim. E eles também mudam o rumo da história.

A discussão sobre o fim da escala 6×1, que impõe seis dias de trabalho seguidos com um dia de descanso, vem ganhando espaço no Brasil. Essa jornada é criticada por seu impacto negativo na saúde mental e bem-estar dos trabalhadores, levando à exaustão física e emocional. Inspirada por modelos adotados em países como Islândia e Nova Zelândia, onde a semana de trabalho foi reduzida sem perda de produtividade, a deputada Erika Hilton propôs uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para abolir essa escala no país. A proposta conseguiu o apoio mínimo de 171 deputados seguindo para análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Caso aprovada, a PEC passa por uma Comissão Especial e, em seguida, pelo Plenário da Câmara e do Senado, onde precisa de maioria qualificada para ser sancionada. 

Com um processo mais rigoroso do que o de leis ordinárias para assegurar a estabilidade do texto constitucional, uma Proposta de Emenda à Constituição ou PEC, é uma ferramenta legislativa usada para que trechos da Constituição Federal possam ser alterados, garantindo, assim, que mudanças relevantes sejam amplamente debatidas e apoiadas. Nos últimos meses, a PEC que visa alterar o artigo 7º da Constituição e dar fim à escala de trabalho 6×1 no Brasil tomou proporções consideráveis por pontuar diversas consequências de se trabalhar seis dias na semana e folgar apenas um.

A proposta tem como princípio substituir a jornada de 44 horas semanais, que foi estabelecida em 1943, para um novo limite de 36 horas semanais, já que a dinâmica do trabalho mudou significativamente, especialmente com a chegada da tecnologia, o trabalho remoto e novos modelos econômicos. Com consequências diretas em setores como comércio e serviços, que historicamente operam sob a escala 6×1, um projeto como este prevê um prazo mínimo de um ano para entrada em vigor, dando tempo para os demais ajustes nos setores econômicos mais afetados.

A coordenadora do setor de extensão da Universidade Fumec e conselheira da Associação Mineira dos Advogados Trabalhistas, professora Andréa Vasconcelos, explica como funciona a escala de trabalho: “A regra geral da jornada de trabalho no Brasil é de 44 horas semanais, conforme previsto na Constituição. Essas horas são distribuídas ao longo da semana, geralmente de segunda a sexta, ou de segunda a sábado, com descanso aos domingos. No entanto, algumas atividades precisam de trabalhadores 24 horas por dia, todos os dias da semana. Assim, surgiu a necessidade de readequação dos dias de trabalho. A escala 6 por 1 consiste em seis dias trabalhados com um dia de folga. Porém, essa folga nem sempre ocorre aos domingos, especialmente em atividades que demandam trabalho nesse dia”, reflete a advogada trabalhista. 

“O marco da institucionalização do Direito do Trabalho no Brasil foi na era Getúlio Vargas, nas décadas de 1930 e 1940. Nesse período, tivemos a criação da Justiça do Trabalho, da CLT e dos programas de auxílio previdenciário”, explica Vasconcelos sobre o processo de conquista de direitos trabalhistas no país. “Na década de 1970, tivemos conquistas como a inclusão de trabalhadores rurais e domésticos na legislação trabalhista. Já a Constituição de 1988 trouxe uma ampliação significativa dos direitos trabalhistas, seguida pela reforma trabalhista de 2017, que alterou mais de 200 dispositivos da CLT.”

Levantando também questões de gênero, Andréa reflete o fato de que o trabalho doméstico não remunerado é um desafio à parte, principalmente se tratando de um trabalho majoritariamente atuado por mulheres. “Recentemente, tivemos avanços como a obrigatoriedade de folgas para mulheres a cada 15 dias em atividades que funcionam todos os dias, mas é necessária uma mudança cultural para equilibrar as responsabilidades dentro das famílias.”



Vasconcelos, por fim, demonstra preocupação ao abordar a temática: “Reduzir a jornada de trabalho sem diminuir o salário é algo desafiador no sistema capitalista. Acredito que ajustes pontuais, considerando as especificidades de cada setor, podem ser mais eficazes”. Entretanto, a advogada pontua a necessidade de uma atenção maior ao direito do trabalhador ao descanso. “O ponto alto é a atenção à saúde do trabalhador e à necessidade de repensar os paradigmas sociais em torno do trabalho. Mas acredito que a proposta só será viável se for ajustada para cada setor.”

Confira o bate-papo com a especialista:

O debate que tomou conta das plenárias nacionais também está sendo pautado nas reuniões do legislativo estadual e municipal. Em Belo Horizonte, por exemplo, a Comissão de Administração Pública realizada na Câmara Municipal no dia 4 de dezembro abordou o assunto. A vereadora Iza Lourença anunciou que um projeto de lei que propõe a redução da jornada de trabalho para terceirizados da PBH está sendo elaborado, com limite semanal de 30 horas e cinco dias de trabalho. Há também a intenção de realizar a formação de uma mesa de negociação envolvendo sindicatos, empresas prestadoras de serviço e a Prefeitura, para discutir essa redução, assim como formar um grupo de trabalho para saber quem e quantos são os trabalhadores na escala 6×1 em Belo Horizonte.

Em reforço à pressão por mudanças estruturais que priorizem o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, diversos movimentos estão desempenhando um papel crucial na mobilização popular, utilizando ferramentas como abaixo-assinados e redes sociais para pressionar os parlamentares. Com adesão significativa, acumulando mais de um milhão de assinaturas em apoio à redução da jornada, esses movimentos também são capazes de influenciar a opinião pública e reforçam a legitimidade da pauta no Congresso.

Saúde mental

Tomando frente nesta luta, o movimento “Vida Além do Trabalho” (VAT), têm mobilizado a opinião pública contra jornadas excessivas e a favor de modelos de trabalho mais equilibrados, com propostas que vão desde escalas de quatro dias de trabalho por semana até a redução do total de horas trabalhadas semanalmente. Essa mudança é vista como uma maneira de garantir uma melhor qualidade de vida e aumentar a produtividade, o que está em linha com práticas internacionais de países que já priorizam o bem-estar dos trabalhadores.

Rick Azevedo, criador do movimento VAT, trouxe uma contribuição importante para a discussão sobre o fim da escala 6×1 no Brasil: Inspirado por experiências pessoais e desabafos que viralizaram nas redes sociais, especialmente na rede social TikTok, Rick relatou como sua rotina de trabalho exaustiva como balconista de farmácia afetava sua saúde e sua vida pessoal. Com isso, ele iniciou o VAT, focando em buscar condições de trabalho mais humanas e uma alternativa à escala 6×1, como o modelo 4×3, por exemplo, que propõe quatro dias de trabalho e três de descanso.

A saúde mental é um dos eixos temáticos principais da discussão, e Marcelo Matta de Castro, psicólogo, professor e pesquisador na área de saúde do trabalhador, pontua que jornadas exaustivas de trabalho estão diretamente ligadas ao adoecimento mental da população: “O excesso de trabalho sugere ansiedade, sugere depressão. Nosso país é o segundo no mundo que mais afasta pessoas do trabalho por problemas ligados à saúde mental, então, sem dúvida, fazer uma escala de trabalho para que as pessoas tenham tempo de viver com mais dignidade é fundamental”. O profissional destaca ainda a importância de momentos vagos no cotidiano dos indivíduos. “O tempo livre não é um tempo ocioso, é um tempo para investir em formação pessoal, em lazer e diversão. É um tempo para que as pessoas invistam no próprio viver delas, e isso é muito importante. Saúde mental não é apenas sobre remédio, está também relacionada à qualidade de vida e bem estar. Isso já é dito há muitos anos pela Organização Mundial da Saúde.” conclui o psicólogo.

Por sua vez, Castro destaca o quão fundamental significa a saúde do trabalhador para que a economia se mantenha ativa: “A redução da jornada não é um empecilho para o desenvolvimento econômico, muito pelo contrário. Quanto mais você investe em qualidade de vida dos trabalhadores, maior é a produtividade, e é fundamental que os trabalhadores participem dos processos decisórios. Nas empresas em que há uma gestão compartilhada com seus colaboradores, na qual eles participam ativamente desses processos que definem as condições de trabalho, há a produção de lucro”, pontua. “Esse formato funciona muito mais se comparado aos lugares onde funciona a questão das metas, que subjuga um trabalho árduo e exaustivo, que certamente levará a um adoecimento mental.”

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que jornadas superiores a 40 horas semanais aumentam os níveis de estresse e problemas relacionados, como insônia e hipertensão. Diversos estudos e experimentos feitos em países como Islândia, Reino Unido, Nova Zelândia, Japão e Portugal mostram que trabalhadores mais descansados são mais produtivos, o que pode reduzir custos a longo prazo com rotatividade e absenteísmo, e também contribuindo para um ambiente de trabalho mais colaborativo e eficiente.

Do outro lado da moeda, há um contraponto usado pelos opositores à PEC: a questão da competitividade econômica, que está associada à capacidade de empresas e nações em gerar riqueza, inovar e se posicionar no mercado global. Através desta linha de raciocínio, muitos empresários temem que a redução da jornada ou a extinção da escala 6×1 aumente os custos operacionais, como a contratação de mais trabalhadores ou o pagamento de horas extras para compensar a redução na carga horária, contando também com a revisão de contratos de trabalho e de suas políticas internas, acarretando preocupações dispendiosas em termos de tempo e dinheiro. Andréa Vasconcelos relata sobre o fim da escala 6×1 e o impacto na economia.

Assim, a transição para escalas reduzidas poderia exigir investimentos em reestruturação e contratação de mais trabalhadores, elevando os custos operacionais em curto prazo. A partir dessa perspectiva, ao considerar a norma em vigor, na prática, empresas de pequeno e médio porte, que já operam com margens apertadas, podem encontrar dificuldade em assimilar esses custos, o que pode levar algumas a recorrer a alternativas como automatização ou terceirização, pois terão de se alinhar às novas regulamentações, contratos e demais acordos.

Desta forma, o impacto sociais e econômico que possivelmente a PEC traria para a sociedade brasileira seria a geração de empregos, já que a redução da jornada poderia incentivar novas contratações e diminuindo o desemprego, proporcionaria um maior tempo de convivência com a família e amigos, mais tempo para atividades sociais, hobbies e até a busca por um desenvolvimento e qualificações profissionais, como especializações, cursos e demais estudos. Ou seja, maior bem-estar e qualidade de vida para a população brasileira no geral. 

Por fim, a proposta de abolir a escala 6×1 e reduzir a jornada semanal no Brasil vai muito além de uma simples mudança nas normas trabalhistas; ela reflete uma transformação necessária para equilibrar vida pessoal, saúde mental e física, e a produtividade no ambiente de trabalho. Apesar dos diversos desafios econômicos que a transição pode trazer, os benefícios em termos de qualidade de vida e bem-estar são incontestáveis, como já demonstrado em experimentos e estudos internacionais. Ao abrir espaço para um debate mais aprofundado e adaptar as normas às realidades de diferentes setores, essa pauta, então, tem o potencial de redefinir a relação do brasileiro com o trabalho, priorizando o direito à uma vida mais digna.

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