Frederico Duboc: “A Guerra de 1948 definiu um Estado de Israel, o que os palestinos chamam de “Nakba”, a catástrofe”

Por Gabriela de Castro

Frederico Duboc / Foto: Acervo pessoal

A data de 29 de novembro é considerada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas o Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino. Em 1947, a resolução 181 era aprovada pela ONU que sugeria, na data, que os povos árabes e judeus partilhassem a Palestina. Em 1977, a situação era de que o povo palestino seguia sem Estado. Nesse contexto, foi aprovada a resolução 32/40 B, associando o dia 29 de novembro à solidariedade à Palestina.

Conecta entrevista a seguir o editor de opinião do jornal O Tempo, mestre em Relações Internacionais com foco em estudos estratégicos e não proliferação de armamentos nucleares, Frederico Duboc, que analisa as características históricas e os desdobramentos modernos do conflito entre Israel e Palestina.

Conecta: Como se iniciou e o que motivou o conflito entre Israel e Palestina? Frederico Duboc: É possível fazer diversos recortes do conflito Israel x Palestina ao analisar as origens, mas o ponto em que a maior parte dos pesquisadores e estudiosos concordam é que a criação do Estado de Israel em 1947 e 1948 é o ponto principal para definir as relações entre israelenses e palestinos, a forma como foi definida a divisão da Palestina e a criação de dois estados simultâneos governados por palestinos e por israelenses. Esse ponto foi definido diante da reação dos países árabes após a saída dos ingleses, que tinham um mandato de controle sobre a região da Palestina desde a década de XX. A Guerra da Independência em 1948 praticamente definiu a existência de um Estado de Israel, o que os palestinos chamam de “Nakba”, a catástrofe. Foi a expulsão de milhares de famílias palestinas que passaram a viver como refugiados ou como exilados em outros países da região do Oriente Médio, onde sofreram uma série de situações, inclusive perseguições dos próprios países árabes, como aconteceu no caso da Jordânia no Setembro Negro, quando houve um massacre de palestinos que ocupavam campos de refugiados. Esse é o ponto que é praticamente um consenso entre os estudiosos de que é um ponto que a gente deve abordar para começar a entender a parte moderna do conflito entre israelenses e palestinos.

“A Inglaterra tem o desafio de pacificar a Palestina porque ali era retaguarda de um dos fronts da Segunda Guerra Mundial”

Conecta: Antes do início do conflito, a Inglaterra prometeu aos judeus que o território que corresponde à Palestina seria um Estado judeu. Qual foi o papel da Inglaterra no começo do conflito e no contexto atual?

FD: Do ponto de vista histórico, a Inglaterra passou a assumir um mandato de controle da região da Palestina após 1920. Isso foi um resultado da derrota do Império Otomano que estava aliado aos alemães e ao Império Austro-Húngaro na Primeira Guerra Mundial, então alguns territórios que eram parte do Império Otomano passaram a ser controlados por potências ocidentais, como a França e a Inglaterra. A Palestina tinha uma grande importância, porque sua localização possibilita um controle do mar mediterrâneo e das navegações em direção à África e também dos campos petrolíferos do Irã. Além disso, a saída pro extremo oriente da Índia era muito importante do ponto de vista de controle do Império Britânico. 

Conecta – E durante a Segunda Guerra Mundial?

FD – A Inglaterra tem esse desafio de pacificar aquela região da Palestina, primeiro porque ali era parte, era retaguarda de um dos fronts da Segunda Guerra Mundial, que foi a Campanha da África, em que Ingleses enfrentaram alemães e italianos pelo controle do norte da África, principalmente a Líbia, a Tunísia e o Egito. Outro ponto é o acesso ao sul da Rússia que era de fundamental  interesse para os alemães na Segunda Guerra Mundial. Se eles tivessem o controle dos campos petrolíferos do Baku e dos campos de gás perto do Mar Negro, a União Soviética na época não conseguiria se sustentar. A Alemanha poderia terminar de invadir a Rússia e se voltar exclusivamente para o front Ocidental e derrotar a Inglaterra e, posteriormente, os Estados Unidos (que viriam a entrar de fato na guerra em 1941).  Então a Inglaterra enxergava a Palestina como uma questão estratégica e precisava pacificar. A Inglaterra tinha uma convivência relativamente pacífica com os países árabes e, de certa forma, uma relação controlada com os povos palestinos. No entanto, já havia uma migração crescente desde o fim do século XIX de judeus para a Palestina e um movimento em busca da independência e da criação de um Estado para os judeus, como foi o caso de um grupo chamado Haganá que fazia resistência a essa ocupação britânica. Houve uma negociação dos ingleses para evitar esses levantes durante o período para que os ingleses focassem no combate aos alemães, o que era de interesse dos judeus na Palestina, justamente porque havia perseguição aos judeus na Europa pelos alemães. Eles também viram a possibilidade de negociar a criação de um Estado de Israel, tendo inclusive oferecido um contingente militar que ficou conhecido como a Brigada Judaica que participou de combates ao lado dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Nas proximidades no fim da Segunda Guerra Mundial, houve uma negociação para onde poderiam ser levados os judeus resgatados dos países em que eles sofreram perseguição na Europa e a possibilidade da criação do Estado judeu. Houve uma declaração que reconhecia esse relacionamento que havia se estabelecido e que previa  a oferta de um território na Palestina para a criação do Estado israelense. 

“São dois movimentos, um que é o contra o Estado judeu, antisionismo, e o outro que é contra os judeus, antissemitismo”

Conecta: Muitas vezes vemos pessoas que criticam Israel sendo chamadas de antissemitas. Qual a diferença entre antissemitismo e antisionismo?

FD: O sionismo é o movimento da existência de um Estado para o povo judeu que vivia a sua diáspora desde os tempos bíblicos. Na Europa, já havia uma segregação do povo judeu no final do século 19, antes da ascensão do nazismo. Surge daí essa necessidade de um movimento político que se tornou conhecido como sionismo, para a criação de um Estado judeu. Posteriormente, foi escolhida Palestina para que esse Estado fosse lá. O antissemitismo é relacionado com essa perseguição contra o povo judeu, que ocorreu em várias partes do mundo, em especial no Leste Europeu e nos Bálcãs. É uma forma de preconceito. Atualmente, separar uma coisa da outra é tentar estabelecer formas críticas em relação à situação de Israel hoje. Em certos casos, as pessoas que criticam Israel algumas vezes reproduzem antissemitismo. Mas são dois movimentos, um que é o contra o Estado judeu (antisionismo) e o outro que é contra os judeus (antissemitismo). Estamos vivendo hoje no mundo inteiro movimentos polarizados, não é um fato exclusivo da região do Oriente Médio, e essas causas acabam se refletindo nessas críticas. Por exemplo, nos Estados Unidos os grupos de supremacistas brancos misturam essas coisas para poder justificar preconceito contra islâmicos por causa de uma causa específica deles contra a imigração. Assim como você tem grupos também que hoje são pró palestinos justamente porque eles identificam Israel como aliado dos grupos que eles buscam atacar nos seus países de origem.

Conecta: O Hamas tem aparecido muito na mídia desde que o conflito ganhou repercussão, teve um início ligado à assistência social na Palestina. Como o Hamas chegou ao que representa hoje?

FD: O Hamas é um grupo que tem várias facetas e elas são interdependentes,  comunicam-se e se apoiam. O que nós temos visto, principalmente no sete de outubro, foi a parte que pratica ações terroristas, naquele caso específico do ataque em que mais de 1.200 pessoas foram mortas de uma forma bastante brutal. Ao mesmo tempo, o Hamas existe como uma organização política que chegou a vencer nas eleições nos territórios da Autoridade Palestina. Essa eleição foi contestada pelo Fatah, o que acabou gerando um conflito civil que levou a uma segregação de fato com organização do Fatah, que é o herdeiro do movimento do Yasser Arafat, governando assim a Cisjordânia, enquanto o Hamas ocupou e governou a Faixa de Gaza. E uma terceira parte, que também é indissociável dessas outras duas, é a que presta serviços assistenciais para a população Palestina em Gaza, que está distanciada da administração central do Fatah na Cisjordânia e o Fatah tem mais interesses e proximidade física com a Cisjordânia, a população em Gaza acaba alijada dos processos decisórios de toda a Palestina, então há uma menor atenção também nos serviços públicos. Além disso, com as questões e preocupações de Israel com a segurança em relação ao conflito que ele tem com o braço armado do Hamas, Gaza fica exposta constantemente a conflitos por ficar no meio do fogo cruzado, perdendo a infraestrutura, o acesso a serviços básicos públicos que acabam sendo fornecidos, em sua maioria, por esse grupo assistencial do Hamas. Então ele funciona em cima dessa tríade política humanitária e militar. É essa tríade que é interligada e interdependente. Uma coisa é ligada a outra, porque parte dos recursos que essa entidade política assistencial capta no exterior, por meio de financiamentos e doações de países como o Qatar e o Irã, por exemplo, acabam indiretamente ou diretamente financiando as ações armadas. 

Conecta – Israel chegou a prestar apoio financeiro ao grupo. 

FD – Em relação aos apoios de Israel, o Hamas surgiu na no fim da Primeira Intifada como um grupo que questionava a liderança de Yasser Arafat sobre a luta dos palestinos contra Israel. Como surgiu uma segunda liderança, mais religiosa e menos secular do que a Organização para a Libertação da Palestina (movimento liderado pelo Yasser Arafat), e que ao mesmo tempo dividiu os esforços, a atenção e o apoio popular palestino, Israel viu uma oportunidade de promover uma divisão entre essas lutas, tendo assim mais capacidade de garantir a sua segurança e enfrentar os clubes que promoviam as intifadas contra Israel, como também de conseguir condições melhores quando houvesse negociações para o resfriamento e um estabelecimento de dois estados. Mas, diante do cenários de evolução de várias relações de terrorismo no Oriente Médio no início dos anos 2000, as negociações recuaram.

“O Oriente Médio é de interesse estratégico para os EUA que estavam projetando o poder com cada vez mais intensidade a partir dos anos de 1950”

Conecta: Durante a época da vacinação contra o Covid 19, Israel esteve muito à frente no processo, tendo inclusive pessoas jovens e fora do grupo de risco sendo vacinadas muito cedo. A Palestina ficou bem para trás e houve inclusive um posicionamento da ONU de que Israel deveria doar vacinas para a Palestina, o que não aconteceu. Diante disso, como se dá a violência não física, mas institucional nesse embate?

FD: Eu não posso me aprofundar na questão da vacinação, porque eu não tenho os detalhes de como funcionava na época. A autoridade Palestina responde por esses dois territórios, a Cisjordânia e Gaza, não quer dizer que não haja uma interferência de um Estado sobre o outro, há questões muito delicadas envolvendo isso tudo. Mas a responsabilidade de cada um é delimitada ali sobre isso. Israel não pode negar direitos a uma população que fica sob responsabilidade de um outro ente político. Mas isso não quer dizer que esse conflito permanente entre israelenses e palestinos não afete a capacidade desses países da Autoridade Palestina de oferecer serviços, já que o fato de você estar num conflito permanente suga recursos necessários de ambos usuários. No caso da Autoridade Palestina é complexo, já que ainda não é reconhecido como país. A situação da guerra traz recursos para a área militar que poderiam ser aplicados em atendimento às demandas sociais de ambos os Estados.

Conecta: Quais são os interesses envolvidos no apoio que os Estados Unidos fornece ao Estado de Israel?

FD: Até 1956, as principais relações de Israel eram com a Inglaterra e a França. Com a Crise do Suez, os ingleses e os franceses estavam preocupados com a nacionalização do Canal de Suez e como isso poderia afetar os interesses de navegação deles em direção ao extremo oriente e ao sul da África, pelo Canal de Suez, e eles fizeram uma tentativa de intervenção, inclusive com um desembarque aerotransportado de tropas francesas e ingleses sobre o canal, ao mesmo tempo em que Israel invadiu o Sinai. Aquilo ali acabou não dando certo, Israel recuou e os Estados Unidos, com pressão internacional, forçou ingleses e franceses a saírem da da região. Naquele momento Israel e Estados Unidos iniciaram negociações, observando que ali havia mais potencialidade de avanços e de segurança por parte de Israel, e por parte dos Estados Unidos, a existência de um país que fizesse frente aos avanços desse nacionalismo árabe do Gamal Abdel Nasser, que era presidente do Egito na época e que estava forçando uma união dos países árabes. A região ali do Oriente Médio é passagem para o extremo oriente, é passagem para a região dos campos petrolíferos e controla alguns pontos extremamente importantes geográficos, como o Canal de Suez. Então ali é uma região de interesse estratégico para os Estados Unidos que estavam projetando o poder com cada vez mais intensidade a partir dos anos de 1950.

Conecta: Nos últimos meses, muitas coberturas jornalísticas têm tratado sobre o tema. Na última edição do Fantástico (Globo), por exemplo, foi feita a abordagem do conflito como uma “guerra santa”. Entretanto, diversos historiadores apontam o conflito como territorial antes de religioso. Qual é sua percepção sobre essas coberturas? O que precisa mudar?

FD: A minha posição em relação às coberturas das questões do Oriente Médio é que são camadas de múltiplas dificuldades. Compreender a questão do Oriente Médio, principalmente a questão Palestina, não é fácil e demanda um esforço gigantesco da área acadêmica. A abordagem pode ser feita por diversos prismas. Um deles é o religioso. Outro é o político. O outro é o territorial. É possível abordar esse conflito da forma como eu acho que produz muitas respostas ricas, que é do ponto de vista dos blocos de poder e das mudanças desses blocos na virada do século XXI. E tudo isso é muito difícil de você abordar para um consumo de massa, como é feito pelos jornais e outros meios de comunicação. Temos um complicador atual que é o advento das redes sociais para a fomentação das polarizações, transformando-as em um campo de enfrentamento, com um ativismo muito intenso, muitas vezes sem os processos de checagem e de filtragem que os meios de comunicação tradicionais possuem. Há uma proliferação de algumas informações falsas, outras enviesadas e umas que pegam um foco específico e amplificam. Então temos esse excesso de polarização e de informações. Alguns veículos tradicionais acabam correndo atrás dessa abordagem, em busca de uma audiência, e essas leituras nem sempre são boas orientadoras como forma de explicar um conflito da dimensão e da complexidade do Oriente Médio, então você vê algumas reproduções da polarização que existe nas redes sociais por parte da mídia tradicional. Algumas coberturas acabam pegando focos específicos, como nesse caso do religioso.