Rebecca Soares: “Deixei um pouquinho de mim na Europa”
Por Rebecca Soares
Nós, seres humanos, nascemos e morremos sozinhos, mas eu sempre fui uma pessoa que nunca esteve verdadeiramente sozinha antes de fazer intercâmbio, mas a experiência tratou de me ensinar rapidinho o que isso significa. Para estudar fora do Brasil eu precisei de muita noção, jogo de cintura e saúde mental.
Me inscrevi no Programa Estudantil de Mobilidade Estudantil da Fumec no final de 2022, fui selecionada e consegui uma vaga para estudar no Instituto Politécnico de Tomar, na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes, uma cidade de apenas 34 mil habitantes (achei minúscula, mas pra Portugal é mediana), no primeiro semestre de 2023. Consegui o visto de estudante em dois meses, viajei nove horas de avião e me encontrei no país ibérico no final de fevereiro dois dias antes das aulas começarem.
Em Portugal, eu tenho dois amigos que ao longo de 16 anos de amizade se tornaram meus primos, ou até mesmo irmãos. Eles foram embora do Brasil nove anos atrás, eu fiquei na casa deles durante vários dias ao longo do intercâmbio, incluindo os dois primeiros dias no país. Então, digo que tive dois anjos da guarda que, por ocasião do destino, são gêmeos, cuidaram de mim com todo carinho e atenção do mundo e até me buscaram no aeroporto.
A rotina
Ao longo de várias semanas eu me sentei nas primeiras cadeiras das longas e espaçosas salas de aula do politécnico porque simplesmente não entendia o que as professoras diziam. Depois de umas seis semanas eu acostumei às falas rápidas e ao fato de que os portugueses não gostam de vogais e preferem falar em consoantes com muitos, muitos ‘s’. Os alunos me receberam bem, simpáticos e descontraídos, todos mais novos que eu, algo que estranhei porque no Brasil minhas salas tinham pessoas de 30, 40 anos de idade e ali naquela faculdade em Abrantes, eu era a mais velha entre 40 alunos.
Morar em uma cidade interiorana em Portugal foi incrível e sempre será umas escolhas mais certas que eu fiz na minha curta vida de 24 anos, mas houve pontos negativos. Os mais clichês foram os que eu achei que não seriam tão importantes assim, mas foram, sem família imediata, num país sem acesso a minha comida brasileira e cercada de pessoas adversas a minha realidade.
Eu fui criada para viver com independência desde pequena e uma coisa eu percebi, ao conviver com dezoito universitários em uma residência mista estudantil por cinco meses: a minha mãe me criou tão bem (risos). Agradeço muito a minha criação por ter ensinado a cuidar das minhas roupas, pertences, saber limpar e cozinhar, e pensar em como manter o meu canto confortável e agradável, porque foram essas habilidades que me valeram ao extremo ao morar com quase 20 pessoas desconhecidas. A minha colega de quarto Beatriz foi simpática, até me mostrou um pouco da cidade e mantinha o nosso quarto bem arrumadinho. No decorrer de cinco meses, criei uma rotina caseira e passei a não me importar com a bagunça de outros (principalmente na cozinha), habilidade que no futuro vai me valer muito.
A vida portuguesa
Um dos hábitos dos portugueses que mais me surpreendeu foi o fumo, havia quiosques de cigarros e tabaco dentro dos shoppings centers, cinzeiros espalhados pelos lugares, a maioria dos alunos da minha sala fumavam, jovens de 18, 19 anos fumando todo intervalo. O segundo foi que eles realmente amam bacalhau, até no mercado de bairro, havia uma mesa só para bacalhau, mal acreditei quando uma das senhoras da cantina do politécnico disse que a lasanha era de bacalhau. Chorizo também há de todos os tipos, cores, tamanhos nos mercados, o arroz só encontrei de 1kg, o feijão se compra mais em conserva, o que eu achei atroz.
Em compensação, as marcas brancas são geniais, os mercados têm mercadorias de produção própria que custam metade do preço das marcas comuns. Os sorvetes são mais baratos que no Brasil, por mais que tenha comprado em euros, mas os chocolates brasileiros são melhores, às vezes você encontra marcas do Brasil e é a mais pura alegria. Quando fui ao mercado com meu amigo brasileiro Vinicius havia paçoquinhas, ele logo pegou um pote e comeu tudo em alguns dias.
Outra característica corriqueira é que Portugal tem muitos cidadãos seniores, Abrantes durante o verão era repleta de velhinhos, casais com terno e boina, vestido e blusinha andando pelas ruas, achei uma fofura.
Parte de mim
Por coincidência fiz amizade de verdade com outros estrangeiros, primeiramente duas meninas, Benisia (Beni para os íntimos) que frequentou as aulas de jornalismo comigo e Lissa, a qual conheci na residência estudantil (resi). As duas são cabo-verdianas e recheadas de amor e carisma, me acolheram tão bem que eu queria ficar lá, cursar os três anos do curso e me formar junto delas. Foram muitas idas aos mercados, procurar os melhores preços, saborear picolés quando o verão chegou e conversas altas que corriam a madrugada. Senti uma cumplicidade fantástica e quero visitar Cabo Verde e conhecer tudo que elas puderem me mostrar. Me presentearam com uma canga com as ilhas de Cabo Verde estampadas com o fundo azul, vermelho, branco e amarelo da bandeira do país africano, que uso direto e me lembro de duas pessoas incríveis que eu tive a sorte de conhecer do outro lado do mundo.
Depois de ouvir português de Portugal por tanto tempo, conheci um piá de camisa azul e cabelo cacheado um mês e meio antes de voltar para América do Sul, o Vinicius, com quem foi sopro de ar fresco conversar e ouvir o português do Brasil, depois de conversar e descobrir que ele era de Maceió e estava em Portugal para fazer faculdade. A amizade que surgiu pelo gosto de K-Pop e a saudade do Brasil não deu outra, assim como foi com a Lissa e a Benisia, as conversas foram fáceis, divertidas e alegres.
O mais legal de ir pra gringa, não foram as lembranças físicas que eu carreguei comigo para Minas, mas sim as pessoas que eu trouxe comigo no coração, e vice-versa, porque eu deixei um pouquinho de mim na Europa com eles.
Conheci outras pessoas que fizeram da viagem uma experiência pacífica e leve e, por isso, eu agradeço a Suzie e a Abelaziza, de São Tomé e Príncipe, a Iara, ao Gabriel e o Rafael de Cabo Verde, as meninas da resi e a Dona Mina, a equipe do politécnico, da cantina até as donas dos correios, a senhora do banco e o pessoal do mercadinho perto da resi que fizeram da minha estadia um prazer imenso.
A amizade foi só uma das coisas que eu consegui nessa viagem, estudei aulas pelas quais tinha muito interesse, pratiquei inglês até me enjoar da língua anglo-saxônica, fui a palestras e mais palestras sobre a área da comunicação e aos poucos me apaixonei pelo dia a dia em Abrantes. Na metade do intercâmbio eu enjoei da comida da cantina e passei a cozinhar em casa, do Brasil eu levei açafrão, pimenta, mix de tempero, chá de camomila e até um bloco de rapadura. Não foi difícil deixar as minhas refeições feitas na cozinha compartilhada com um gostinho brasileiro.
Andanças e memórias
À medida que a primavera chegou, passei a visitar o castelo, o jardim do castelo, andava pelas ruelas que por alguma razão chamavam de ‘largo’, embora a maioria não passa um carro de passeio. Entretanto, a arquitetura é encantadora, sempre amei prédios antigos e me enamorei do castelo o suficiente para pintar uma aquarela que levou dias para terminar, até que ficou mediana e agora é uma boa lembrança do tempo que passei em Abrantes.
Escolher essa cidade foi coisa do destino, eu queria mesmo era ir pra Macau, mas para inscrever-se no PROME é preciso escolher duas escolas e. na pressa de achar um site que tivesse o nome das aulas mais fáceis pra transferir pra ficha de inscrição, me deparei com o site do IPT, coloquei e me enviei. Eu não esperava que a China mesmo com as fronteiras abertas fosse recusar intercambistas, o tanto que eu chorei não dá pra descrever, mas por insistência da responsável pela mediação do departamento de relações internacionais da Fumec, fui pesquisar se teria condições de arcar com o aluguel do quarto na resi do politécnico, e deu certo, é o valor que eu pago na van para vir de Sete Lagoas todo dias para Belo Horizonte.
Se eu tivesse ido para Macau eu não teria oportunidades de frequentar a minha igreja todos os sábados à tarde. Não ia andar uns 2km e acabar pegando carona com casais que iam também pelo resto do caminho. Não teria comemorado aniversário, ido ao chá de bebê de uma menininha que agora acompanho o crescimento pelo Instagram. Não teria conseguido um bolo red velvet e um cheesecake de frutas vermelhas de brinde no meu aniversário ao fazer uma compra de 5 euros no Lidl, foi muito muito bom ter baixado o aplicativo mercado.
Durante a viagem para Espanha por quatro dias eu devo ter postado só story de cidade e rua, estava cansada de tanto andar, usando roupas não ‘aesthetics’ para tirar foto, me ocupei de ir a museus, galerias, institutos de artes, prédios históricos e supermercados para matar a fome, se alguém for algum dia, o Mercadona tem ótimos sanduíches por 4,50Є e o kefir deles é ótimo também. Para ir a Bilbao, Barcelona e Valência eu peguei um vôo, três ônibus e um trem (o trem mais limpo, lindo e confortável da face da terra). Fiquei em dois hostels, um em Bilbao, um em Valência, nas outras noites três noites eu dormi nos ônibus noturnos que peguei para diminuir o gasto, mas deu tudo certo. Ao todo devo ter gasto um quinto do que gastaria se tivesse ido daqui do Brasil para Espanha, foi a oportunidade de uma vida, nove pontos de cultura e arte, três cidades transbordando história e natureza, pra mim foi o melhor programa do mundo.
Enfim, memórias, tantas que eu nem preciso fantasiar ou imaginar, é só lembrar. Eu tentei gravar e tirar fotos, escrever um jornal, mas ainda assim as melhores imagens vêm da minha mente que fez o máximo para aproveitar cada segundo.