Estudos combatem preconceito contra uso da Cannabis Medicinal

Por Geraldo Calixto Jr. e Jorge Flávio Fernandes

Transtornos psicológicos, dor crônica, câncer e Parkinson motivam cada vez mais as pessoas em todo o mundo a buscarem tratamentos eficazes e que possam diminuir o drama de conviver com uma doença. Não é raro encontrar casos desses no Brasil e, por isso, a busca por tratamentos alternativos tem aumentado muito nos últimos anos.

O uso de canabidiol – óleo extraído da maconha – para tratamento de transtornos psicológicos vem sendo procurado por muitas famílias que enxergam no uso medicinal da planta Cannabis a possibilidade para melhorar os sintomas que interferem nos comportamentos de agressividade e interação social, no caso de pessoas com transtornos mentais, e ajudar nos sintomas de dor, insônia e perda de foco em outros casos.

De acordo com a Associação Brasileira dos Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME), estudo realizado em Israel analisou 188 pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) tratados com a Cannabis medicinal entre 2015 e 2017. A maior parte dos participantes utilizou o óleo de Cannabis feito de uma composição de 30% de Canabidiol (CBD) e 1,5% de Tetrahidrocanabinol (THC). O medicamento era aplicado diretamente na língua dos pacientes três vezes ao longo do dia.

Depois de seis meses do início do estudo, 155 pacientes ainda se encontravam em tratamento ativo. Destes, 93 foram avaliados, com o seguinte resultado: 28 pacientes (30,1%) relataram melhora significativa nos sintomas; 50 pacientes (53,7%) relataram melhora moderada nos sintomas; seis pacientes (6,64%) relataram melhora leve nos sintomas; oito pacientes (8,6%) relataram não ter percebido qualquer alteração nos sintomas. Como conclusão, os autores definiram que a cannabis parecia ser uma opção bem tolerada, segura e eficaz para aliviar os sintomas, especialmente os comportamentos não essenciais, associados ao TEA.

Portanto, essa procura pelo tratamento usando o canabidiol tem sua justificativa baseada nos bons resultados que vem crescendo ao redor do mundo. No entanto, a situação no Brasil (assim como em outros países) é bem complicada, tendo em vista que o plantio da maconha ou a circulação de qualquer substância derivada da Cannabis é ilegal no país. Mesmo aqueles pacientes autorizados pela justiça ainda enfrentam algumas dificuldades para conseguir o remédio e desmistificar os preconceitos que envolvem o assunto.

Foto: Anderson Nazareno, psicanalista e ativista nos tratamentos psicoterapêuticos com Cannabis

O psicanalista Anderson Nazareno ressalta que o preconceito prejudica muito os avanços: “O preconceito ainda afasta as pessoas e faz com que alguns que poderiam se beneficiar recusem”. Ele também dá ênfase à falta de apropriação das técnicas médicas e farmacêuticas no uso de remédio à base de Cannabis. Segundo o psicanalista, a sensação é de que ainda falta muita preparação do Estado e da sociedade para aceitar esse tipo de tratamento e, consequentemente, ajudar nos avanços da ciência.

“Os médicos que vão buscar fazer prescrição precisam se capacitar para isso e todos os outros profissionais de saúde envolvidos precisam se capacitar. Porque existe uma lacuna nesse universo de conhecimento, no sentido da apropriação das técnicas para se utilizar o remédio, no acompanhamento do paciente e entender realmente o que irá encontrar nesse tratamento”.

AMA+ME
O apoio de associações é importante para dar voz e potencializar essa discussão no Brasil. A Associação Brasileira dos Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME)  é uma fonte para pesquisar dados sobre o assunto. Fundada em 2014, a AMA+ME tem sido fundamental na defesa do uso de medicamentos à base de cannabis no país.

Com o objetivo principal de promover a inclusão social e garantir o acesso ao tratamento para pacientes que necessitam de cuidados voltados à saúde mental, a AMA+ME também tem se dedicado a expandir o conhecimento e desmistificar os mitos e preconceitos em torno da cannabis e seu uso medicinal. Por meio de pesquisas contínuas sobre novas abordagens terapêuticas e da divulgação dos avanços científicos, a associação obteve progressos significativos no avanço dos tratamentos com Cannabis no país.

Uma das principais conquistas da AMA+ME diz respeito à iniciativa de fornecer e facilitar acessos a Óleos de Cannabis Medicinais Integrais desde 2019. Inicialmente, a associação produzia o plantio em uma Ecovila localizada na região sul do país, após um acordo de cooperação técnica aprovado pelo Tribunal Regional Federal (14ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária) para legalizar as atividades de cultivo da associação.

A AMA+ME já recebeu mais de 1.130 pacientes como membros e, de novembro de 2019 até o início de 2023, distribuiu 1.935 frascos de óleo de cannabis medicinal para pacientes em 21 estados brasileiros. Dentre esses estados, Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro apresentam o maior número de pacientes associados. O que dá a entender que os pacientes que conseguem realizar esse tipo de tratamento geralmente residem nos estados mais ricos e bem desenvolvidos do país, demonstrando que há também um recorte socioeconômico.

Acompanhe no gráfico a seguir os dados disponibilizados pela AMA+ME:

Fonte: Associação Brasileira dos Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME) – 2023

Preconceito

As dificuldades do dia a dia de uma pessoa com transtornos mentais e dores crônicas fazem parte da rotina de Cleuza Ladário, ativista e mãe de um paciente que faz tratamento à base de Cannabis. Ela relata as dificuldades enfrentadas para conseguir a permissão das autoridades governamentais para utilizar a Cannabis de forma medicinal no tratamento de epilepsia do seu filho: “Eu comecei a plantar de teimosia e fui denunciada por um vizinho por estar plantando Cannabis e fui para delegacia como traficante. Porém, o delegado se comoveu com a situação do meu filho e me instruiu a entrar com o pedido de HC (Habeas Corpus), para que eu pudesse ter a liberação do juiz”.

Cleuza conta que teve que enfrentar os próprios preconceitos contra a maconha para conseguir cuidar do filho Samuel Ladário, de 17 anos:  “A minha mãe sempre me ensinou a fugir da maconha e do maconheiro, eu tinha pavor da maconha. Então como eu tinha uma grande necessidade de descobrir um tratamento alternativo para o meu filho, eu achei bom fazer algum curso e conhecer melhor essa planta, porque ela foi me apresentada como uma planta maldita. Eu me inscrevi na Cultive que é uma Associação que trabalha para ensinar as pessoas a cultivarem o seu H, e fazer o preparo do remédio.”

É uma realidade cruel e solitária. “Em outros Estados do Brasil você nem consegue doar porque o Correio apreende e a Polícia Federal chama a gente para saber o que é aquilo. A coisa mais triste que pode existir na vida de uma família é ter um paciente neurológico em casa e você não ter um óleo de Cannabis para tratar ele, porque os remédios da farmácia para tratar pacientes neurológicos alucinam e acabam com o pouco que a pessoa tem de cérebro.”

Foto: Cleuza Ladário/Arquivo Pessoal: Instagram

O autismo, atualmente chamado de Transtorno do Espectro Autista (TEA), envolve condições neurológicas que impactam significativamente o desenvolvimento cognitivo, habilidades motoras, interação social, comunicação e comportamento. No entanto, o canabidiol puro (CBD) tem sido uma esperança nos tratamentos desses transtornos, além disso, os óleos de Cannabis Sativa enriquecidos com CBD demonstraram eficácia no alívio dos sintomas, especialmente em pacientes com epilepsia refratária.

Benefícios do tratamento

Segundo a AMA+ME, um estudo observacional com 18 pacientes autistas tratados com óleos enriquecidos com CBD mostrou melhora significativa em diversas categorias de sintomas, incluindo déficit de atenção, hiperatividade, transtornos comportamentais, déficits motores, autonomia, comunicação e interação social, déficits cognitivos, distúrbios do sono e convulsões. A maioria apresentou melhora em várias categorias de sintomas. Além disso, pacientes conseguiram manter as melhorias mesmo após a redução ou suspensão de outros medicamentos além da Cannabis.

Foto: Samuel Ladário e sua mãe Cleuza/ Arquivo Pessoal: Instagram

Outro estudo realizado com mulheres diagnosticadas com fibromialgia revelou resultados promissores no uso de um óleo de Cannabis com alto teor de THC. Essas mulheres apresentaram uma melhora significativa nos sintomas relacionados à dor, capacidade de trabalho, fadiga e qualidade de vida.

É importante destacar que esse estudo ocorreu em uma região com perfil socioeconômico desfavorável e alta incidência de violência. Os Fitocanabinóides, presentes na Cannabis, foram considerados uma terapia de baixo custo e bem tolerada para o tratamento da fibromialgia.

A comunidade científica está cada vez mais empenhada em explorar o potencial terapêutico da Cannabis em diversas condições médicas e a AMA+ME apoia a regulamentação necessária para continuar proporcionando alívio e produzindo conteúdo científico sobre o uso medicinal da Cannabis no Brasil e no mundo.

Leia também: Canabidiol – em favelas do RJ, maioria depende de ajuda para tratamento

Diagnóstico e monitoramento

O perfil dos associados da AMA+ME destaca a maioria de pacientes do sexo feminino, representando um total de 56,7% (645 pacientes), com idades variando de alguns meses de vida a 98 anos, sendo a idade média de 53,6 anos. Vale ressaltar que o fato dos pacientes associados terem mais de 50 anos acaba resultando em prevalência de doenças relacionadas à idade como diagnóstico principal no pela associação.

Dos 1.137 inscritos, foram informados os seguintes diagnósticos primários: 227 (20%) Ansiedade, 204 (18%) Dor Crônica, 165 (14%) Epilepsia, 132 (12%) Alzheimer, 102 (9%) Parkinson, 82 (7%) Autismo, 64 (6%) Artrite/Osteoartrite, 55 (5%) Câncer e 106 (9%) com outros diagnósticos.

Os números a seguir mostram significativa demanda por tratamento à base de cannabis no Brasil.

Flor vermelha com folhas verdes

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Associação Brasileira dos Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME) – 2023

Para garantir o acompanhamento eficaz dos resultados e efeitos adversos do uso de óleo de Cannabis Medicinal entre seus associados, a AMA+ME criou o Projeto Piloto de Monitoramento do Tratamento com Fitocanabinóides que utiliza abordagem de Produto Viável Mínimo (MVP), empregando protocolos personalizados e formulários acessíveis por smartphone com QR Codes, vinculados a prescrições médicas.

Os participantes preenchem voluntariamente os formulários antes de usar o óleo medicinal e em intervalos de 30, 60 e 90 dias, gerando banco de dados abrangente que auxilia nos ajustes de dose e no monitoramento dos efeitos adversos relacionados à terapia com canabinóides.

Para o monitoramento de ansiedade, depressão e sequelas neurológicas, utiliza-se o Inventário de Ansiedade Traço-Estado (IDATE1), por meio do Protocolo de Monitoramento de Ansiedade/Depressão AMA+ME 1.0. Um formulário baseado no Brief Pain Inventory, adaptado pelo Serviço de Medicina Paliativa do MD Anderson Cancer Center, é utilizado para monitorar a dor crônica por meio do AMA+ME Pain Protocol 1.0.

O Epilepsy Protocol 1.0 coleta dados sobre os tipos de convulsões e seu impacto nos cuidadores. O Alzheimer’s/Dementia Protocol 1.0 monitora pacientes com Alzheimer e outras condições relacionadas à demência, auxiliando no atendimento ao paciente e melhorando a qualidade de vida dos cuidadores. O Protocolo Parkinson/Tremor Essencial/Distúrbios do Movimento 1.0 é empregado.

Esses protocolos e formulários contribuem para o acompanhamento mais efetivo dos pacientes, permitindo ajustes de doses e otimização dos resultados. Todos os protocolos mencionados também consideram o impacto no cuidador principal, reconhecendo a importância de avaliar o desgaste causado pelo cuidado ao associado. Além disso, é realizado o monitoramento do tratamento Fitocanabinóide em si, avaliando o tipo de tratamento, produto canábico utilizado, via de administração, efeitos adversos e satisfação com o tratamento.

O acompanhamento permite que o resultado de melhora é de fato conquistado, além de gerar mais dados que auxiliam na pesquisa. A Associação categoriza as pesquisas dividindo em duas etapas que analisam os tratamentos com diagnósticos específicos e um apanhado geral com informações de todos os diagnósticos.

O grau de satisfação com o tratamento foi medido, na perspectiva geral:

Uma imagem contendo Texto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Associação Brasileira dos Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME) – 2023

O próximo gráfico mostra o grau de satisfação por tipo de diagnóstico:

Interface gráfica do usuário

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte: Associação Brasileira dos Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME) – 2023

Mesmo que o grau de satisfação seja alto, os efeitos adversos não são deixados de lado, mas são catalogados, organizados e servem como dados de pesquisa.

Conforme relatado pelos associados, foram observados os seguintes efeitos adversos:

Uma imagem contendo Linha do tempo

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Associação Brasileira dos Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME) – 2023

Embora a busca por tratamentos alternativos utilizando o canabidiol tenha demonstrado resultados promissores ao redor do mundo, a situação no Brasil ainda apresenta desafios significativos. A ilegalidade do plantio da maconha e a circulação de substâncias derivadas da Cannabis dificultam o acesso desses pacientes aos medicamentos necessários. Mesmo aqueles que obtêm autorização legal enfrentam obstáculos para adquirir o tratamento e lidar com os preconceitos associados ao assunto.

Conscientização

No entanto, associações como a AMA+ME têm desempenhado um papel fundamental na defesa dos medicamentos à base de Cannabis no país. Ao promover a inclusão social, garantir o acesso ao tratamento e desmistificar os mitos e preconceitos em torno do tratamento, a Associação tem obtido progressos significativos na expansão do conhecimento e promoção dos tratamentos com Cannabis no Brasil.

Com o apoio de associações como a AMA+ME, a discussão sobre o uso medicinal da Cannabis tem ganhado cada vez mais potencial no Brasil, além de monitorar e acompanhar os resultados e efeitos adversos do uso desses medicamentos. No entanto, é necessário avançar na regulamentação e conscientização sobre o potencial terapêutico da Cannabis.

A jornada de Cleuza Ladário, mãe de um paciente que faz tratamento com Cannabis, exemplifica as dificuldades enfrentadas por muitas famílias que buscam o uso medicinal da planta. Superar as barreiras burocráticas e os preconceitos é essencial para garantir o acesso a tratamentos eficazes e melhorar a qualidade de vida desses pacientes.

Enquanto a comunidade científica continua a explorar o potencial terapêutico da Cannabis, é fundamental que o país avance na regulamentação e disponibilidade desses tratamentos. Dessa forma, mais pacientes poderão se beneficiar dos efeitos positivos da Cannabis Medicinal, com o alívio dos sintomas, desfrutando de melhor qualidade de vida.