O amor não mata: o que os dados contam sobre o feminicídio em MG
Por Júlia Rodrigues e Lucas Silva
Há alguns anos atrás, algumas pessoas viravam pra mim e falavam: “Nossa! Você tem um sorriso bonito”. Essa semana eu estava lembrando disso. Eu não sou mais a mesma pessoa, eu não tenho mais esse sorriso bonito. Eu sou uma pessoa que toda hora que olham para mim parece que estou com raiva. […] Eu passei por tantas coisas na minha vida que parece que está estampado.
Este trecho faz parte do depoimento de Élida (42). Uma mulher que viveu 19 anos e 11 meses em um relacionamento que, durante os 15 primeiros anos, foi repleto de planos. Até que Élida decidiu deixar o seu antigo trabalho e iniciar a faculdade a distância. “Parece que incomodava ele o fato de eu estar em casa, de ter conseguido um trabalho em uma empresa grande, tudo que eu fazia parecia que incomodava. Parecia que ele não gostava de me ver bem”, conta Élida.
A partir deste momento, ao lado deste homem, ela teve que lidar com o ciúme excessivo, proibições, discussões e agressões físicas, como ela relata.
Élida conta sobre o relacionamento abusivo marcado pela manipulação, controle e violência masculina
A Lei Maria da Penha, publicada em 2006, prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial − Capítulo II, art. 7º, incisos I, II, III, IV e V. Conforme o Instituto Maria da Penha, “essas formas de agressão são complexas, perversas, não ocorrem isoladas umas das outras e têm graves consequências para a mulher. Qualquer uma delas constitui ato de violação dos direitos humanos e deve ser denunciada.”
Élida teve a oportunidade de reescrever a sua história ao lado dos filhos. Porém, esta não é a realidade de muitas mulheres. Até maio de 2023, os dados oficiais da Polícia Civil de Minas Gerais registraram 128 casos de feminicídio.
Destes, 57 foram Tentados, ou seja, quando a execução não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, e 71 foram considerados Consumados, quando se reúnem todos os elementos legais de sua disposição legal. Os dados do Armazém SIDS/REDS, apresentados nesta reportagem, incluem violência doméstica e familiar, bem como o menosprezo e discriminação pela condição de mulher.
O Sistema Integrado de Defesa Social (SIDS) é um sistema modular, integrado, que permite a gestão das informações de Defesa Social relacionadas às ocorrências policiais e de bombeiros, à investigação policial, ao processo judicial e à execução penal, respeitadas as atribuições legais dos órgãos que o compõem.
Desde 2015, a Lei n°13.104 configura feminicídio o assassinato de uma mulher quando motivado pela condição de sexo feminino, ou seja, por ser mulher. Envolvem-se, nestes caso, violência doméstica ou familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Incluído no rol de crimes hediondos, tem pena de 12 a 30 anos, que pode ser agravada quando o crime é praticado contra gestantes, ou três meses posteriores ao parto, na presença de filhos ou de menores de 14 anos ou maiores de 60 anos.
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), publicado em 2021, informa que cerca de 81, 1 mil assassinatos de mulheres. Cerca de 56% tiveram a vida mutilada pelo esposo, companheiro ou outro membro familiar.
Para a professora associada do Centro de Estudos Criminalidade e Segurança Pública do Departamento de Sociologia Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro, o crime de feminicídio é cometido pelos homens devido às variáveis nas questões sociais, quando, muitas vezes, os homens têm um comportamento machista, conservador e autoritário. “A principal motivação para o feminicídio é a cultura patriarcal que não vê a mulher como uma pessoa dotada de direitos assim como os homens”, afirma.
Ainda de acordo com a socióloga, para o combate eficaz ao feminicídio é preciso que se tenha mais detenção, ou seja, a coerção de forma mais dura, em que os homens possam de fato respeitar as mulheres em todos os ambientes. Ludmila fala sobre como pode ser perigoso o não cuidado e atenção sobre a criação de meninos em lares onde esse tipo de situação pode ocorrer.
“Sujeitos que crescem em lares violentos, nos quais as mães eram vítimas de violências distintas, têm maiores chances de praticar essas mesmas violências que desaguam em feminicídio”, afirma a professora. Ela acredita que é importante que haja uma reformulação na educação infantil no que diz respeito à posição da mulher na sociedade, onde que tem que existir mais realidade do que “contos de fadas”.
BH
De acordo com a Polícia Civil do Estado de Minas Gerais (PCMG), Belo Horizonte sedia dois importantes pontos de acolhimento à mulher em situações de violência doméstica e familiar: a Delegacia de Plantão Especializada em Atendimento à Mulher e a Casa da Mulher Mineira. Os espaços oferecem ações como a solicitação de medidas protetivas de urgência, que contempla o acompanhamento policial até sua residência para retirada de seus pertences em segurança (roupas, documentos, medicamentos etc); recebimento da guia de exame de corpo de delito; realização da representação criminal para a devida responsabilização do agressor; recebimento e encaminhamento para casas abrigo; serviços de atendimento psicossocial e orientação jurídica na Defensoria Pública, entre outros.
Segundo PCMG , todo o trabalho é desenvolvido em um ambiente adequado e com privacidade para uma escuta qualificada e humanizada das vítimas. Fora de Belo Horizonte, todas as ocorrências de violência doméstica e familiar contra a mulher fora do horário de expediente são encaminhadas para as delegacias de plantão.
Além disso, algumas ocorrências, tais como ameaça, lesão, vias de fato e descumprimento de medida protetiva podem ser realizadas por meio da Delegacia Virtual, sem a necessidade de comparecimento da vítima em uma unidade física da PCMG.
Com o objetivo de orientar as mulheres em situação de vulnerabilidade, a PCMG lançou uma cartilha intuitiva que possui todo tipo de informação necessária para a instrução das mulheres vítimas de violência.
Onde o Estado não vê
A coordenadora da Casa Tina Martins, Pedrina Gomes, explica que o Estado de Minas Gerais oferece poucas casas de acolhimento especializada. Segundo ela, muitas mulheres são culpabilizadas ou responsabilizadas nestes espaços e isso contribuiria para a subnotificação. “Crimes relacionados
ao gênero têm o maior índice de subnotificação”, explica. A assistente social defende a necessidade de delegacias especializadas para que as mulheres se sintam seguras e que minimamente façam uma escuta mais empática e sensível capaz de realizar um atendimento digno a estas mulheres.
De acordo com Pedrina, para combater o feminicídio, o Estado precisa investir em políticas de prevenção. “A política de enfrentamento passa por quatro aspectos: âmbito preventivo, combate à violência, garantia dos direitos humanos, assistência e monitoramento. A gente ainda está presa no aspecto de atendimento de violências que já aconteceram”, explica. Para ela, o Estado ainda trata a questão com uma questão de justiça sob olhar punitivista, punindo o agressor e a vítima.
Dados do Anuário de Segurança Pública deste ano reforçam grave crescimento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022, com base em informações das secretarias de segurança pública estaduais, polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais da Segurança Pública. De acordo com a diretora executiva do Fórum, Samira Bueno, fatores como a pandemia e o encorajamento das mulheres para realizar as denúncias podem estar relacionados a esse aumento.
Tina Martins
A Casa de Referência da Mulher Tina Martins, mais conhecida como Casa Tina Martins, é uma instituição onde são abrigadas mulheres vítimas de violências domésticas e também de vulnerabilidade social. A entidade tem como objetivo levar a essas mulheres uma nova chance de viver uma vida mais digna, em elas possam ser mais felizes, alegres, transformadas e restauradas socialmente.
No local existem quatro eixos pelos quais as mulheres passam. Formação política, assistência jurídica e psicológica e acolhimento e abrigamento. A cozinha da instituição passou por reforma por meio de recursos doados. Agora, mulheres também participam das oficinas de culinária, com o objetivo de gerar mais renda e, também, para maior produção de camisas, acessórios e produtos na oficina de serigrafia. Mensalmente ocorre a “Feira Tina Martins”, ação em que as mulheres e as coordenadoras da Casa produzem e vendem alimentos, com a finalidade de gerar maior visibilidade social à Casa Tina Martins.
Serviço
Casa Tina Martins
Instagram: @CASATINAMARTINS
E-mail: casatinamartins@gmail.com
Telefone: (31) 36589221