Anistia: triunfo da força bruta e manipulação ideológica sobre direito e razão democrática, analisa pesquisador

Ataques de bolsonaristas à Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF), em 8 de janeiro
Foto:Joédson Alves/ Agência Brasil

Por Isabella Ferreira e Vitória Figueiredo

A proposta de anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, quando centenas de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram os prédios do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal, em Brasília, tornou-se um dos principais temas em discursos políticos e debates nas redes sociais.  A constitucionalidade dessa medida, ou seja, sua conformidade com a Constituição Federal de 1988, é motivo de divergência entre especialistas. O perdão pelos crimes cometidos por uma pessoa  foi  concedido a quem cometeu crimes políticos e eleitorais durante a Ditadura Militar, entre setembro de 1961 e agosto de 1979. 

A Constituição estabelece que a anistia não se aplica em condenações para crimes hediondos, como terrorismo, assalto, sequestro, atentado pessoal, prática de tortura e tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. De acordo com o Supremo Tribunal Federal (STF), os participantes dos atos de 8 de Janeiro cometeram, entre outros, o crime de associação criminosa armada. Os crimes cometidos pela maioria dos 503 condenados foram: associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Mais de 500 envolvidos nas ações golpistas (que incluem quem financiou, incitou e executou as invasões e depredações) já foram condenados pelo STF. As penalidades vão de um a 17 anos de prisão. 

Segundo o mestre e doutorando em Sociologia, pesquisador do Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos (NEGRA/UFF), Helbson de Ávila, os atos de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, e o complexo debate subsequente acerca de uma possível anistia para os envolvidos tocam em feridas abertas da sociedade brasileira e em questões cruciais sobre democracia, justiça, poder e memória. Para ele, a anistia não visa à reconciliação num sentido emancipatório (que exigiria verdade, justiça e reparação), mas à tentativa de evitar que os responsáveis sejam punidos e à normalização de um ataque sem precedentes às instituições. “Seria um passo gigantesco na direção da regressão autoritária, consolidando a ideia de que a força bruta e a manipulação ideológica podem triunfar sobre o direito e a razão democrática.”

“A Justiça” foi pichada durante atos golpistas|Foto: Reprodução/Conjur  

Durante os atos golpistas, a escultura “A Justiça”, localizada em frente ao prédio do STF, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi pichada por uma das participantes da invasão. Acusada pela pichação, a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos foi denunciada, também, por ter aderido à tentativa de golpe e impedimento da posse do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).  A acusação foi realizada pela Procuradoria Geral da República (PGR) que entendeu que a declaração da cabeleireira, de que estava acampada em frente ao quartel general do exército na véspera de 8 de janeiro, serviu como prova da participação dela nos atos golpistas. Débora responde pelos crimes de abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de Estado, dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa armada. 

Democracia e memória

Helbson de Avila: “Anistia premiaria aqueles que tentaram destruir o espaço público democrático”|Foto: Arquivo Pessoal

Segundo o pesquisador Helbson de Ávila, a proposta de anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro “serve aos interesses de um grupo político específico que busca se proteger das consequências legais e, mais profundamente, manter viva e sem máculas a sua base ideológica radicalizada, impedindo uma reflexão coletiva sobre a gravidade do ocorrido.”  Do ponto de vista do pesquisador, o pedido é profundamente improcedente e ilegítimo. Helbson afirma que “os atos de 8 de janeiro não foram meros “excessos” ou “manifestações”, como tentam enquadrar discursos que visam minimizar sua gravidade (como quando o ex-presidente Bolsonaro se referiu aos presos como ‘pobres coitados’ ou ‘chefes de família’).”

“Eles representaram um ataque direto aos pilares da racionalidade comunicativa que fundamenta a democracia: o respeito às instituições, às leis, ao resultado eleitoral e à própria possibilidade de um debate público baseado em fatos.” Para o pesquisador, conceder a anistia seria, portanto, negar a própria possibilidade de justiça e aprendizado coletivo, premiando aqueles que tentaram destruir o espaço público democrático. “É a antítese da emancipação”, comenta. Helbson sintetiza, a seguir, sua visão a respeito da concessão da anistia para os envolvidos nos atos 8 de janeiro.

O pesquisador ressalta, ainda, o impacto que o debate sobre o projeto de anistia traz para o futuro político do Brasil. “Seu impacto transcende a questão legal específica, pois atua diretamente na formação da consciência política e da memória coletiva. Ao forçar um posicionamento, ele expõe e aprofunda a fratura entre um projeto de sociedade baseado  – ainda que imperfeitamente – na razão democrática e um projeto autoritário, baseado na força, na mentira e na mobilização de afetos antidemocráticos”, afirma.

Democracia exige compromisso com os fatos, valores democráticos e pensamento crítico|Foto: Amanda Perobelli/BBC News

“O futuro político dependerá, em parte, da capacidade da sociedade brasileira de processar criticamente esse debate, rejeitando as manipulações ideológicas e reafirmando um compromisso com a verdade factual e os valores democráticos, ou sucumbindo à desinformação e ao cinismo.” Além disso, o pesquisador explica que a possível aprovação do projeto seria um grande retrocesso para a democracia no Brasil. Significaria que a lei e a ética estariam cedendo à pressão de grupos que são contra os princípios democráticos. Impediria também a construção de uma memória coletiva crítica sobre o 8 de janeiro, essencial para o aprendizado e o fortalecimento da cidadania.

Leia também: Ocupação no Dops para torná-lo memorial completa dois meses

Manifestações

A reação da sociedade mostra como há uma divisão de ideias e uma disputa por diferentes formas de pensar e entender a realidade. Por um lado, pesquisas de opinião (Datafolha, Quaest) consistentemente mostram que a maioria da população rejeita a anistia para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Manifestações e campanhas sob o lema “Sem Anistia!” mobilizaram setores da sociedade civil, partidos de esquerda e centro, movimentos sociais e entidades como a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), expressando a defesa dos valores democráticos e necessidade de responsabilização. Esta reação representa a resistência da consciência democrática, segundo o pesquisador Helbson de Ávila.

Manifestantes lutam contra projeto de anistia
Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

Por outro lado, segmento significativo apoia a anistia ou minimiza os eventos. Essa reação é frequentemente observada em redes sociais, grupos de mensagens e mídias alternativas alinhadas à extrema-direita, onde circulam intensamente narrativas que vitimizam os presos (“guerreiros”, “patriotas injustiçados”) e atacam as instituições (“perseguição política”, “STF comunista”). Para o pesquisador, a reação demonstra a eficácia da desinformação e propaganda ideológica em criar “bolhas” de realidade alternativa e manter uma base. Ele analisa essa divisão não apenas como uma diferença de opinião, mas como um sinal de disputa por poder sobre ideias e valores na sociedade. Isso também mostra como é difícil construir um espaço público racional e crítico no Brasil atual.

O texto principal não beneficia diretamente Jair Bolsonaro, que está inelegível até 2030. Mesmo assim, a oposição busca ampliar o alcance do perdão, com o objetivo de torná-lo elegível para as eleições de 2026. A proposta também pode favorecer aliados do ex-presidente acusados de envolvimento em tramas golpistas. Um dos projetos associados, de autoria do deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Bolsonaro, propõe alterações no Código Penal que dificultariam punições por crimes contra o Estado Democrático. Outras propostas preveem a limitação da atuação do STF e da Justiça Eleitoral, o que poderia impactar processos já julgados.

“Embora a resistência institucional, vocalizada por figuras como o Ministro Alexandre de Moraes, torne o avanço formal da proposta improvável no cenário atual (início de 2025), a persistência do debate em si é significativa”. Helbson diz que a proposta evidencia uma luta contínua pela narrativa e pela consciência social, onde setores extremistas buscam desgastar as instituições e manter sua base mobilizada. Na perspectiva crítica do pesquisador, “validar tais atos através do perdão institucional seria um perigoso passo na normalização da violência antidemocrática, com severas consequências para o futuro”.

Manifestação em favor da anistia para envolvidos nos atos de 8 de janeiro|Foto: CNN Brasil

Anistia: o que diz o projeto?

O PL da Anistia, PL 2858/2022, foi inicialmente apresentado pelo ex-deputado Major Vitor Hugo (PL-GO), em novembro de 2022, segundo o site Politize!. A proposta original previa anistiar os participantes dos protestos de 30 de outubro de 2022, que ocorreram após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais. Na ocasião, manifestantes bloquearam rodovias em diversas regiões do país, o que resultou em prisões.

Em 2023, o projeto foi ampliado para incluir os envolvidos nos atos de 8 de janeiro, estendendo o alcance da anistia. A versão atual concede perdão a todos que apoiaram, financiaram ou participaram dos atos antidemocráticos, incluindo aqueles que fizeram mobilizações nas redes sociais. A medida abrange tanto os já condenados quanto os que ainda estão em julgamento, extinguindo as penas de quem já foi sentenciado.

Além disso, o projeto propõe mudanças no Código Penal, estipulando que apenas atos com violência grave contra pessoas seriam considerados crimes em tentativas de abolição do Estado Democrático de Direito. Também prevê a manutenção dos direitos políticos de investigados ou condenados. De acordo com informações da CNN Brasil, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), o relator Rodrigo Valadares (União Brasil-SE) defendeu a anistia para todos os envolvidos nos atos de 8 de janeiro. No entanto, o parecer perdeu validade após a retirada do projeto da comissão.

A anistia para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro é vista de formas diferentes por representantes de partidos políticos.Para o Partido Liberal (PL), os participantes dos atos devem ser anistiados. Já para o Partido dos Trabalhadores (PT), a anistia aos envolvidos nos atos golpistas não deve ser concedida.

Leia mais: Anistia: panorama histórico

About The Author