Elisangela Colodeti: “Prática jornalística é importante para debate sobre mercantilização da informação”
Por Pedro Oliveira e Thaís Amorim
No Oscar 2022, uma cena marcou o evento: Will Smith foi até o palco e desferiu um tapa na cara do colega de profissão, Chris Rock, apresentador da cerimônia, após este ter feito uma piada de mau gosto com a esposa de Smith, Jada. Após o ocorrido, Will Smith foi banido das próximas edições do Oscar. Já Chris Rock declarou que só falaria do tapa que levou, caso o pagassem. Se analisada à luz do Jornalismo, a fala do autor da série de TV “Todo Mundo Odeia o Chris” remete a uma das faces do tratamento da informação como mercadoria, uma vez que, os mass media interessados em abordar a agressão sofrida por ele deviam lhe pagar por isso. Há, também, casos em que figuras públicas “compram o silêncio” midiático sobre temas que as envolvem, ou são silenciadas pelos meios de comunicação.
Em fevereiro, o Papa Francisco viajou à África. Na ocasião, o pontífice fez críticas pontuais à forma com que as potências do Ocidente tratam o continente africano. Contudo, veículos de grande circulação no mundo não deram ênfase às falas do líder da Igreja e/ou à visita de Francisco a países como Sudão e Congo. Pode-se deduzir que o silenciamento da mídia, neste caso, tem cerne na disputa pelo domínio da África, criticado pelo Papa, confronto que envolve detentores e financiadores de conglomerados midiáticos globais.
Exemplos como esses são apenas alguns dentre os que reforçam a real evidência da mercantilização da informação no Jornalismo. Um dos deveres dos jornalistas é assegurar o direito dos cidadãos de informarem e serem informados com fatos que sejam relevantes para a sociedade como um todo (interesse público), ou para nichos específicos do meio social (interesse do público). Todavia, constatam-se ações que ferem essa norma da profissão no tocante à desregrada intervenção econômica no modus operandi do universo das notícias, o que prejudica a função de informar e pode até provocar danos aos envolvidos nos fatos noticiosos.
Elisangela Colodeti (@eliscolodeti), é editora-chefe e apresentadora do Jornal Band Minas desde agosto de 2021. É, também, professora de Telejornalismo na Universidade FUMEC. Foi repórter e apresentadora na Rede Globo por 12 anos. Durante oito anos de sua permanência na emissora, apresentou o telejornal diário “Bom Dia Minas” para todo o estado de Minas Gerais. Em 2015, ganhou o Prêmio Globo de Jornalismo, pela cobertura do rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana. Como jornalista investigativa independente, publicou, no último ano, reportagens em veículos como Folha de São Paulo, National Geographic, CartaCapital, Agência Pública de Jornalismo Investigativo, Portal Uol, dentre outros. É mestre, na linha de pesquisa Interações Midiáticas, pela PUC-MG, especialista em História e Culturas Políticas pela UFMG e em Direitos Humanos e Cidadania Global, pela PUC-RS.
Nesta entrevista, Elisangela esclarece sobre o viés mercadológico da informação, como esse fenômeno ocorre nos dias de hoje e qual a relação do produto informativo com ares de mercadoria com as fake news e o jornalismo digital.
Conecta: Como você acredita que ocorre a mercantilização da notícia no newsmaking contemporâneo?
Elisângela Colodeti: O fazer noticioso na contemporaneidade traz consigo uma complexidade, salvo que é possível que vários polos emissores de notícias coexistam ao mesmo tempo. Em um viés histórico, desde o surgimento do Jornalismo tradicional até a prática jornalística como a conhecemos hoje, nos transportamos ao século XVIII na Europa e, em seguida, nos Estados Unidos. Nesse cenário, é possível elucidar a influência do mercado publicitário que financia os jornais. Logo, o fazer jornalístico tradicional sempre esteve arraigado a um tipo de venda. Hoje, o mercado da publicidade se modificou, assim como os pilares de sustentação do exercício do Jornalismo. Temos, ainda, o modo tradicional da profissão, com características como a venda de espaços para publicidade e produções nas mídias digitais com outras formas de comercialização. Além disso, hoje em dia, temos produções que se intitulam como independentes, com financiamentos distintos àqueles que já bancam meios de comunicação de massa. No caso do Jornalismo independente, há produtos que são pagos por meio de fundos internacionais de defesa aos direitos humanos, ou por seus próprios seguidores. Penso que a diferenciação dos modos de prática jornalística é de suma importância antes do aprofundamento de debates sobre a mercantilização da informação.
Conecta: Na sua visão, este é um fenômeno já corriqueiro no jornalismo, ou que se avolumou nos últimos tempos? Caso tenha se massificado, a que fatores você credita tal crescimento?
EC: Vejo que há transformações, ao longo da história, decorrentes de modificações dos mass media, da sociedade em geral, de questões econômicas. Logo, a visão da informação como mercadoria também, aumentou, assim como as formas de monetização de conteúdos jornalísticos que se tornaram distintas e se modernizaram.
Conecta: Você vê na transformação da notícia em mercadoria um caráter tangente à classe social dos envolvidos nos fatos, uma vez que, geralmente, indivíduos de pilares sociais menos recalcitrantes, e de que há o estereótipo de que apenas componentes de patamares mais estáveis podem “comprar o silêncio” da mídia?
EC: Os veículos jornalísticos se formaram a partir da venda do espaço publicitário. As primeiras produções do meio estavam muito ligadas a um viés político, à monarquia, à Igreja e outros membros e instituições detentoras do capital na sociedade. O teórico Nelson Lage é um dos estudiosos que discorrem sobre a história do Jornalismo que sofreu, ainda, o impacto do surgimento da burguesia, da alfabetização das pessoas, da industrialização, o surgimento das cidades e de outros fenômenos. Dessa forma, nossa profissão consolidou uma indústria, a indústria jornalística.
“Estamos diante de uma maioria numérica, ou seja, mulheres, negros, a população periférica, entre outros grupos que tornam evidentes as lacunas para que, realmente, todos da sociedade tenham voz nos meios de comunicação de grande circulação”
Conecta: Qual o risco disso para o Jornalismo?
EC: Contudo, devemos analisar esse fato com muita atenção para não nos debruçarmos sobre um olhar estereotipado e até preconceituoso, uma vez que, desde os primórdios, a notícia foi tratada com requintes mercadológicos. Além disso, esse tratamento propiciou o surgimento dos veículos de informação e, sobretudo, da liberdade de imprensa, salvo que, os jornalistas, cientes que teriam financiadores de seu trabalho, sentiam-se mais seguros na produção do conteúdo noticioso. Nesse contexto, tal fator toca, ainda, na profissionalização do jornalista. Ao meu ver, os riscos da mercantilização da informação são, também reais, e estão em fatores como a espetacularização dos fatos e a priorização de fala aos detentores do poder. Quando os grandes conglomerados sustentavam, no passado, este paradigma, geralmente, utilizavam o interesse público como justificativa. Contudo, é necessário questionar quem é esse público, que, majoritariamente, será composto apenas por aqueles com maior representatividade, ou seja, pessoas brancas, homens, de classes sociais elevadas. Hoje, vemos produções jornalísticas independentes que trazem, também, a defesa de um interesse público. Neste caso, porém, estamos diante de uma maioria numérica, ou seja, mulheres, negros, a população periférica, entre outros grupos que tornam evidentes as lacunas para que, realmente, todos da sociedade tenham voz nos meios de comunicação de grande circulação.
Conecta: Para você o clickbait é uma consequência da transformação da notícia em mercadoria?
EC: Quando falamos de clickbait, falamos de uma concorrência pela audiência, formas de chamar a atenção para que haja cliques em uma notícia em que, geralmente, não há tantas informações relevantes quanto à chamada para ela. Desde o surgimento do Jornalismo, as estratégias para captar o interesse dos leitores são frequentes, pois, com o tempo os mass media se viram em um cenário competitivo com as manchetes, a indústria jornalística, as técnicas do lide, da pirâmide invertida, a escrita com vistas à audiência, o “Jornalismo amarelo” (sensacionalista), e contracorrentes da profissão como o Jornalismo literário e independente. Logo, estamos diante de uma profusão de modos e estratégias acerca da cadeia produtiva da informação. E, dessa infinidade de metodologias surgem debates e questionamentos sobre qual desses modos de se fazer Jornalismo é mais ético, mas, o clickbait é, sem dúvida, uma busca por audiência no webjornalismo, bem como uma chamada interessante em uma escalada de telejornal e até a linha editorial dos conglomerados midiáticos.
“Deve-se elucidar o que é ético no tratamento da informação, qual o rumo do Jornalismo e formas de financiamento de trabalho destoadas das barreiras impostas pela lógica mercantilista, pois, tais práticas influem sobre tópicos como a remuneração dos profissionais da imprensa”
Conecta: De acordo com o Reuters Institute Digital News Report, o Brasil está entre os três países que mais consome fake news. Na sua opinião, a mercantilização da notícia dificulta o combate à distribuição de notícias falsas?
EC: Considero importante ponderar que esta pergunta está muito relacionada ao PL 2630 (o “PL Das Fake News”), uma vez que ele trata do modo com o qual as plataformas atuam. Ao meu ver, há pouca regulação delas hoje para que haja um freio à propagação de notícias falsas. É difícil explicitar, de forma direta, qual a causa disso, pois estamos em um país com problemas educacionais, em que as pessoas não sabem diferenciar ou interpretar textos e informações. Infelizmente, a base educacional do Brasil é deficitária e deveria ser melhor. Hoje, as plataformas são pouco responsabilizadas por aquilo que nelas circula e isso torna-se algo ainda mais complexo quando vemos a chegada da inteligência artificial e do uso de robôs. Logo, a “PL das Fake News” traz pontos que favorecem essa regulamentação, de forma que, por exemplo, as plataformas sejam punidas por permitir a difusão de desinformação dentro delas, sejam essas informações distribuídas por pessoas, robôs, ou em anúncios. Acredito que seja algo complexo para ser relacionado à mercantilização da informação. Contudo, recordemos que desde o início de sua história, a informação jornalística é tratada conforme a ideologia do mercado, o que não nos permite classificar esse fenômeno como algo novo na profissão. Deve-se, portanto, elucidar o que é ético ou não no tratamento da informação, qual o rumo do Jornalismo e as formas de financiamento de trabalho destoadas das barreiras impostas pela lógica mercantilista, pois, tais práticas influem sobre tópicos como a remuneração dos profissionais da imprensa. Vejo que há uma construção de realidade a ser feita nesse aspecto.