Do bolso à desigualdade: o peso dos impostos sobre quem tem menos

Sistema tributário brasileiro perpetua disparidades e impacta, principalmente, mulheres negras e famílias de baixa renda

 
Desigualdade na arquitetura tributária brasileira tem raízes históricas que mantêm privilégios das elites econômicas/Foto: Banco de Imagem Vecteezy

Por Ana Luiza Guastaferro e Vitória Figueiredo em colaboração da jornalista Ana Clara Cabral

Mais de dois séculos após o período colonial e escravista, o sistema tributário brasileiro ainda opera como um mecanismo de reprodução das desigualdades, afetando, diretamente, os mais pobres, as mulheres e as famílias negras. Enquanto isso, as elites econômicas seguem protegidas por isenções sobre rendimentos de capital e grandes fortunas.

Dados vinculados ao Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e ao Observatório da Desigualdade revelam que, enquanto os 10% mais vulneráveis comprometem 32% de seus rendimentos com impostos, os 0,1% mais ricos desembolsam apenas 10% da própria renda. 

2025 Relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades  

 

Gráficos: Ana Luiza Guastaferro

Os impactos econômicos sofridos pela população negra têm raízes históricas. Após a abolição da escravidão em 1888, o Estado brasileiro não implementou políticas de inclusão, como acesso à moradia, emprego, educação e condições dignas de vida. A ausência estrutural de reparação repercute em diversas esferas da sociedade, especialmente, na economia. Mesmo representando mais da metade da população em idade de trabalho, as pessoas negras correspondem a 65,1% do total de desocupados no Brasil, segundo o Dieese

Além disso, a precarização do trabalho e a incidência de condições análogas à escravidão continuam a afetar essa população. Entre 2002 e 2024, 66% dos trabalhadores que recebiam o seguro desemprego para indivíduos resgatados por trabalho análogo à escravidão eram negros, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego. Os dados fazem parte da série histórica dos últimos 20 anos. 

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Mulheres negras e desigualdade social

Além de pesar sobre a população menos favorecida, a carga tributária reproduz desigualdades estruturais de gênero e raça. A tributação incide de forma desproporcional sobre as mulheres negras, que recebem salários mais baixos. De acordo com Relatório da Transparência Salarial, publicado em 2024 pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a remuneração média dessas mulheres é 50,2% inferior à dos homens brancos. 

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As consequências da tributação sobre o consumo vão além dos prejuízos econômicos individuais. As mulheres negras, que já enfrentam dificuldades estruturais no acesso à renda e oportunidades, estão entre as mais afetadas por este sistema. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD Contínua), elas representam 65% dos lares mais pobres do país: justamente os mais atingidos pela alta tributação sobre bens e serviços essenciais.

Embora estejam entre as mais penalizadas pela cobrança de impostos, as mulheres negras ainda não ocupam o centro do debate sobre justiça fiscal. Para o especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais (Seplag-MG), Gabriel Luiz Lisboa, o tema carece de articulação entre raça, gênero e economia. “A discussão avança em termos técnicos e políticos, mas nem sempre se articula com as agendas de gênero e raça, que continuam sendo tratadas como pautas paralelas”, pontua.

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Entre as mulheres afetadas pela cobrança desigual de impostos, está a empreendedora do ramo alimentício, Camila Fernandes, que sente efeitos diretos da alta tributação em suas vendas. “Eu sou microempreendedora, trabalho dentro da minha casa, e cada centavo faz diferença. Quando um insumo como leite condensado, creme de leite ou chocolate aumenta de preço, muitas vezes não é só pelo mercado em si, mas também por causa da alta carga de impostos”, explica.

A tributação sobre produtos essenciais, como alimentos, transporte e energia, afeta, simultaneamente, a produção e o consumo. Como esses bens estão entre os mais tributados do país, o peso recai sobre quem mais depende deles: a população de baixa renda e, principalmente, mulheres.

O encarecimento dos produtos fundamentais no dia-a-dia aprofunda o custo de vida e intensifica as desigualdades sociais, atingindo quem já compromete boa parte da renda com impostos. “Essa situação impacta diretamente a minha produção, porque eu não consigo simplesmente repassar tudo para o cliente, senão perco a venda. Então, eu acabo absorvendo parte do custo e isso diminui muito a minha margem de lucro”, relata.

Camila Fernandes, microempreendedora: carga tributária sobre alimentos e insumos
essenciais encarecem produção e consumo/Foto: Arquivo pessoal

Disparidades regionais em MG

A renda média dos mineiros cresceu 18,2%, entre 2022 e 2024, segundo o IBGE e a PNAD Contínua, mas o índice de Gini (que mede a diferença da distribuição de renda em uma região) oscila de maneira discrepante entre as cidades mineiras, de acordo com o Dieese. O dado revela que o aumento de renda não foi o suficiente para reduzir as disparidades sociais no estado. 

A arrecadação estadual é majoritariamente sustentada pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), responsável por cerca de 75% da receita tributária, conforme dados da Receita Federal. Isso significa que grande parte do dinheiro arrecadado vem da compra de produtos cotidianos, justamente os que mais pesam no orçamento das famílias de baixa renda.

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ICMS – Secretaria de Estado de Fazenda

Fernandes vive essa realidade. Ela explica que o ICMS incide diretamente sobre os produtos que utiliza em sua confeitaria e considera o modelo injusto, citando produtos tributados. “O pequeno empreendedor não tem fôlego. A gente paga imposto em tudo: no gás, no leite, no chocolate, na embalagem. Parece que a gente está sempre remando contra a maré. O sistema não diferencia quem é pequeno de quem é gigante, e isso pesa muito.”

O impacto também chega ao consumidor final. “Quando eu pago mais caro no insumo, o consumidor final paga mais caro também. E isso não é só na confeitaria, é em qualquer área: no mercado, no transporte, no gás de cozinha. No fim, é sempre o consumidor final que sente o peso, porque o aumento [dos preços] vai sendo repassado em cada etapa.”


Renúncias ampliam abismo tributário

Medidas que tornem a tributação mais progressiva e reduzam a incidência sobre o consumo poderiam aliviar os efeitos do ICMS sobre empreendedores e consumidores, promovendo um sistema mais justo e equitativo, argumenta Lisboa. “Medidas estaduais poderiam incluir a revisão de benefícios fiscais no ICMS, buscando maior progressividade. Por exemplo, com a criação de mecanismos de devolução de parte do imposto para famílias de baixa renda (como foi implementado no Rio Grande do Sul com o programa de cashback de ICMS.”

Além do ICMS, o sistema tributário de Minas Gerais, assim como o do Brasil, concentra sua cobrança sobre o consumo e o trabalho, enquanto tributa de forma branda o patrimônio e a renda. Essa configuração faz com que a arquitetura de impostos mineira seja considerada “profundamente regressiva”, segundo as classificações do Dieese e do Observatório das Desigualdades. 

Para o presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais de Minas Gerais (Sindifisco), Mathias Bakir, o sistema de impostos brasileiro é desigual: as cobranças atingem, mais intensamente, quem recebe salários menores. 

No cenário nacional, a regressividade da tributação decorre da predominância de tributos que incidem sobre o consumo das famílias, enquanto empresas pagam, proporcionalmente, menos impostos. Em 2021, por exemplo, organizações empresariais brasileiras receberam R$215 bilhões em isenções e benefícios fiscais, de acordo com dados da Receita Federal. Lisboa confirma a característica estrutural do sistema. “O sistema brasileiro tem essa forte regressividade, com peso excessivo sobre o consumo”, aponta.

Por incidir sobre o consumo, a tributação atinge, de forma mais intensa, as pessoas de menor renda. Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostra que esse modelo onera proporcionalmente mais os pobres do que os ricos, ou seja, quem ganha menos acaba pagando mais impostos. 

O ICMS, principal imposto estadual que incide sobre a circulação de mercadorias e serviços, está entre os tributos com maior volume de renúncias fiscais. O valor do ICMS passou de R$ 4,7 bilhões em 2018 para R$ 15,4 bilhões em 2024, com projeções que indicam um possível aumento de R$ 19,1 bilhões até 2028. Os dados são da Receita Federal e foram divulgados pelo Portal UOL.  

A prática das renúncias fiscais também se repete no âmbito federal. Em 2024, a União renunciou a, aproximadamente, R$ 789,6 bilhões em benefícios fiscais, segundo estimativas da Receita Federal e da Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Unafisco). O montante engloba isenções, anistias e outros incentivos tributários. Em Minas, também houve aumento das renúncias fiscais. Entre 2021 e 2024, o valor saltou de R$ 13 bilhões para R$ 20,2 bilhões, conforme dados da Secretaria de Estado de Fazenda (SEF-MG) divulgados pelo jornal Estado de Minas. 

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De acordo com o presidente do Sindifisco, renúncias e incentivos fiscais colaboram para a situação de  disparidade na cobrança de impostos , com a previsão para 2026 de que renúncias no estado superem  20 bilhões de reais, de acordo com o Jornal O Tempo. 

Entrevista com o presidente do Sindifisco, Mathias Bakir/Repórter: Ana Luiza Guastaferro

Tributação regressiva e desigualdade estrutural

Além das renúncias fiscais, o sistema tributário brasileiro mantém uma carga de impostos equivalente à 33% do Produto Interno Bruto (PIB), ou o somatório dos produtos e serviços que um país produziu durante um determinado período. A relação entre PIB e a carga tributária do Brasil e países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é semelhante. Enquanto os países do bloco destinam, em média, 34% do Produto Interno Bruto à arrecadação de impostos, o Brasil registra cerca de 33%.

A semelhança, porém, termina nos números. A forma como os tributos são cobrados difere altamente. Nos países da OCDE, a maior parte da arrecadação vem de tributos progressivos sobre renda e patrimônio, que incidem conforme a capacidade financeira de cada contribuinte. Já no Brasil, a dinâmica é inversamente proporcional: a carga tributária se concentra sobre o consumo, atingindo mais quem ganha menos.

O especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental da Seplag_MG explica a discrepância. “Comparativamente, o Brasil está abaixo da média da OCDE na tributação de heranças e grandes patrimônios e, também, destaca-se negativamente por não tributar dividendos distribuídos às pessoas físicas, o que não é comumente visto entre países desenvolvidos.”

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O peso cotidiano da injustiça tributária

Em outras palavras, o Brasil cobra pouco sobre fortunas e rendimentos elevados e muito sobre o consumo cotidiano, o que faz com que a população de menor renda seja a mais impactada. Esse modelo reflete diretamente no preço de produtos e serviços básicos. “O leite condensado e o creme de leite, por exemplo, que são base para vários dos meus doces, já tiveram aumentos que eu não consegui repassar para o cliente”, relata Fernandes, que percebe, na prática, o peso da discrepância tributária. 

Com a alta dos impostos e o consequente encarecimento de alimentos, pequenos negócios, como o de Camila Fernandes, enfrentam dificuldades para se manter. Eu precisei comprar em atacados ou até de terceiros para conseguir manter um preço que o meu cliente pudesse pagar”, explica. A elevação constante dos insumos reduz a margem de lucro dos empreendedores. “O chocolate, carro-chefe dos bolos que produzo, é uma mercadoria que não tem como substituir. O aumento de preço do chocolate pesa diretamente no meu bolso. Ou seja, eu acabo ganhando menos, mas não posso parar de produzir, porque é meu sustento.”

A arquitetura tributária não é apenas um reflexo das disparidades econômicas, mas também um fator que as aprofunda. Enquanto empreendedoras como Fernandes lutam para manter seus negócios em meio ao aumento de custos, o sistema continua pesando mais sobre quem tem menos. “Também seria interessante a priorização de políticas orçamentárias que compensam a regressividade do sistema tributário, possibilitando o direcionamento de mais recursos para saúde, educação e programas sociais voltados a populações vulneráveis”, ressalta o especialista da Seplag-MG. A equidade fiscal, conclui, é mais do que uma questão técnica: é um passo essencial para a justiça social.

Como se informar sobre tributação

Compreender como os impostos são cobrados e participar dos debates sobre tributação é um exercício de cidadania. É fundamental para cobrar justiça fiscal e fortalecer o papel social do Estado. Em Minas Gerais, iniciativas como o Programa de Educação Fiscal (PEF/MG), promovido pela Secretaria de Estado de Fazenda, oferecem cursos e materiais gratuitos sobre cidadania fiscal, transparência e controle social. O cidadão também pode acompanhar informações oficiais sobre arrecadação, gastos públicos e orçamento por meio do Portal da Transparência e do Observatório da Desigualdade, que disponibilizam dados abertos de fácil acesso.

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